Na vida existem momentos que nos marcam, que carregamos a lembrança nítida, estava assistindo uma entrevista com uma psicanalista que me trouxe diversos insights sobre alguns desses momentos do meu passado. Estava lembrando quando eu era criança devia ter uns sete anos de idade, a turma estava brincando no parquinho da escola e a professora pediu que eu fosse ver a hora no relógio da escola, sai do parquinho em direção a entrada da escola onde ficava um relógio bem grande, a distância entre o parquinho e essa entrada devia ser de uns cem metros ou um pouco menos, lembro que não fui sozinha outras colegas quiseram me acompanhar, então fui olhei o relógio vi as horas e voltei, mas como estava acompanhada me distrai com a conversa das coleguinhas e quando cheguei até a professora eu já não lembrava que horas eu tinha visto. Não me recordo o que a professora disse, mas lembro que fiquei muito envergonhada de não lembrar o horário, ela talvez expressou sua frustração em ter me delegado aquela tarefa e eu ter falhado, então ela mesmo foi lá ver as horas. Quando ela se levantou para ir até o relógio eu talvez tenha ficado ali remoendo meu constrangimento. Muitas vezes na vida adulta tenho essa sensação ainda, de que vão me pedir algo e talvez eu falhe na conclusão, quantas vezes acabei me sabotando, talvez revivendo aquele momento inconscientemente. Hoje tomando essa consciência posso ter mais controle sobre isso e aceitar o fato de uma criança de sete anos acompanhada de amiguinhas se distrairia com certeza e acabaria esquecendo o do horário que havia visto.
Então uma outra memória me veio da mesma época, eu sempre morei perto da escola, e no inicio minha mãe me levava de casa até a escola, mas percebendo que o caminho era fácil e seguro deixou de me levar e então eu caminhava sozinha para ir e voltar, a professora sabia disso e por isso quando dava o horário de saída se despedia e me deixava ir para casa, mas um dia a professora faltou e a substituta não sabia que minha mãe não me pegava, naquela época tinha um outro coleguinha que também ia sozinho para casa, mas todos sabiam que ele morava uma quadra da escola, praticamente podia se ver a casa dele do portão, mas eu morava uns três quarteirões, então quando deu a hora de ir pra casa as mães chegaram pegaram os coleguinhas o meu amiguinho que morava perto saiu sem problemas, mas a professora substituta não deixou eu ir, disse que eu tinha que esperar minha mãe, eu tentei explicar que ia sozinha, mas ela pareceu não acreditar, talvez imaginou que eu estava apenas querendo ir logo embora, não queria esperar, enfim. Lembro que os que ainda estavam por ali me olhavam e mais uma vez me senti envergonhada com a situação, alguns coleguinhas falaram para ela que eu ia sozinha, não sei se a inspetora de alunos depois disse para ela que podia me deixar ir e então ela deixou, fato foi que ela acabou me deixando ir depois de longos minutos nesse empasse. Fui embora naquele dia com outro animo, envergonhada da minha autonomia, e também sentindo que minha mãe não estava fazendo certo deixando eu ir sozinha, na minha cabeça talvez ficou a ideia de que ter autonomia era algo solitário e que minha mãe devia cuidar mais de mim não me deixando voltar sozinha. Hoje percebo que não tinha nada errado, era realmente perto, era seguro, minha mãe confiava que eu sabia fazer aquele trajeto, mas me recordo que depois desse episódio o caminho parecia maior e a sensação de medo e solidão naqueles metros até em casa pesaram durante um tempo. Quantas vezes evitei lugares, situações e até viagens por sentir essa insegurança de que sozinha não era certo, de que tinha que ter alguém comigo, que alguém iria fazer alguma critica a meu respeito pela minha autonomia. Quantas bagagens trazemos da nossa infância, quantas coisas precisamos olhar agora com olhos de compaixão para aquela criança que não sabia e interpretava as coisas a sua maneira. Desde muito pequena eu sempre fui encorajada a confiar em mim e na minha capacidade de realizar, mas não entendia assim, entendia que isso não era bom, que era errado ter essa confiança e coragem. Como eu queria agora abraçar aquela menininha e dizer pra ela, olha só essa professora não conhece você, não conhece sua história, ela não sabe que sua mãe te acompanhou por alguns dias, e confiou que você poderia fazer isso muito bem, enquanto ela ficava com seu irmão caçula em casa te esperando, preparando o jantar da família enquanto você caminhava corajosamente para casa, que ir sozinha não significa que eu era só, mas que eu podia fazer aquilo.
Estou prestes a fazer uma viagem sozinha, e talvez me lembrei dessas duas passagens da minha infância por perceber que adiei muito muita coisa por medo de viver, medo de assumir que sou capaz de realizar coisas grandiosas, que vou saber o caminho de casa, que vou saber para onde ir e o que fazer, que talvez eu me distraia em alguns momentos mas que eu posso voltar e fazer de novo.
Independência é algo bom, falhar é poder fazer de uma forma diferente depois.
Vamos acolher nossas histórias nosso passado, ressignificar ele enquanto é tempo e parar de nos sabotar na vida adulta, acolhendo nossa criança ferida, curando ela, para que possamos aproveitar o melhor que a vida tem a nos oferecer.